narrativa não-utilitária

ser uma armadura
ser uma pedra
ser um facão

montar num cavalo
se misturar aos detritos
dar passagem ao que for

fortalecer os punhos
endurecer sem perder el cariño
tapar os buracos do interior

se jogar na lama

se sinto culpa por tudo
que arde queima e coça
é por escorregar com facilidade 
na luminosidade dos fantasmas

já me impus as mais diversas 
histórias reais e ficcionais
essas enfileirei sobre o lençol
para contar em rezas quantas
denunciam coisa alguma sobre mim

bicho de sete cabeças

tendo a repetir palavras
que já disse ou escrevi: os planos
a vida mentirosa dos adultos

como escrever sem tocar
nada além da minha voz:
esse plural complexo
para uma analfabeta emocional

como escrever um romance
como se escreve poemas?

como desaguar numa palavra
que preserve a loucura dos pássaros
se os loucos forem pássaros ameaçados?

eles são feitos de um
pó muito fino: eu
não sobreviveria a esse amor.

bolor

morangos mofados não é apenas uma metáfora. as cores também fogem de nós e dos nossos olhos. a gente mofa exatamente como os morangos. a gente perde a cor como as televisões até os anos 60. os fungos ficam invisíveis, mas estão ali aguardando as temporadas mais frias para formarem uma pequena camada branca sobre qualquer coisa parada na umidade por tempo demais.

fauna

eu esperava de você coisas meio longas, como viagens e frutas-maduras-coloridas, mas você se moveu para o sul dos nutrientes. não há chance de sobreviver ali no inverno. eu devo ter ficado completamente louca-solar ou completamente lúcida-glacial (o que é impossível). eu esperava de você um animal marinho de águas quentes-litorâneas, tipo uma tartaruga marinha ou um golfinho, mas você foi geleira.

"saber a razão dos seus frutos" osman lins

1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

- joão cabral de melo neto

quanto mais longe estamos de escrever, mais o nosso canto é solitário.

despedida em seis linhas

as pessoas falam de nós
como se você e eu fossemos
mas você não está aqui
há muito tempo

quanto tempo falta
para eu ir embora também?

jeitos de morder a língua

a arte é a última via da repetição. a transferência de uma dor no peito para um quadro em aquarela, óleo ou acrílico. as setenta e nove páginas de um livro de poesia, de correspondências. uma letra de música que começou num guardanapo do barzinho de potilândia.

açu concreto

há uma barragem

armando ribeiro 

dentro de mim


sombra ao lado

recife, 08 de maio de 2025

amenizar os estigmas, falar sobre eles, se sentir um pouco menos só. reformular rotas pra nao ser um diagnóstico como se É artista. mas talvez ter um diagnóstico, como se tem uma profissão, um cabelo rosa, um piercing no nariz e um alongamento de cílios.

inferno

o que terei de jogar no Aqueronte?
o que direi ao rio?
de quê terei morrido?

"tenho um sonho em minhas mãos"

entre as rochas
as serpentes nos acham,
mas também nos distraem 

é verde e marrom
a cor de tudo
talvez amarelo
os pontos de encontro

tentamos capturar uma calêndula 
invisível que pousa plumática
no ruído das nossas mãos

mais uma vez o sonho
nas ruas onde se jogam as flores
dessa vez entendemos
um pouco mais do significado

a mulher matou os peixes?

 

foto que tirei sem saber que precisaria ler anos depois

algo quebra um espelho essencial dentro da gente.

querida, isso é mais forte do que eu posso escrever. o meu esforço é tudo que eu posso te dar. meu choro, minha nave, meu rio, meu mar, minhas mãos, meus sufocos... nossos sentimentos, nossa força e coragem. me assusto quando te esbarro, mas corro de volta para falar uma primeira e última coisa.

incêndios (2010)

you and whose army?
[radiohead]
o filho e o pai é
um exército
que ninguém quer encontrar
os olhos dela
são três flechas
para os seus pés
fuzilando fumaças de areia
com armas de santo

todo movimento é um efeito
especial. te cega por prevenção

"não sou eu que gosto de nascer..."

quero pastar a vontade
percorrer a vegetação inteira
e comer sem medo

quero mastigar a semente
e rastejar sobre o solo
esfregando as correntes
na terra seca

quero pastar como um
camelo. vaca
touro ou áries

quero dar a conhecer 
meus ossos bem depois da carne
e renunciar ao delírio da carne
convivendo entre os peixes
e quem sabe as ostras

quero comer o vale
das sombras
e ainda ter fome
pra comer um pasto inteiro
como qualquer animal

ser e aceitar ser

alê: (...) talvez aceitar que podemos ser as derrotadas da história. 
aí a gente vai só ser.

regar as flores

minha mãe me queria santo
eu descobri que amava os vícios
eu precisei andar com as bruxas

eu aprendi com as flores

meu pai me queria impávido
eu precisei correr das brigas
eu aceitei levar uns socos

eu aprendi com as flores

[flores do bem - MOMO] 

encarando o duende

Retornei e tudo está bem
Mas ainda há algo faltando
Como todas as paredes

[Starálfur, Sigur Rós]

sacrifício

por que me dói tanto ser quem eu sou?