o passado é uma roupa que se ajusta à pele

"você tem uma cara de quem vai fuder minha vida
o seu olhar é um caminho sem saída
o seu corpo e um caminho sem saída
...
somos livres como girassóis de Van Gogh"
(Baco Exu do Blues - Girassóis de Van Gogh)

"a tua boca me dá 
água na boca
que vontade 
de grudar uma na outra"
(Itamar Assumpção - Tua boca)





as cartas disseram que o passado era um portal aberto, e era inimaginável que você aparecesse para mexer comigo num lugar onde habita a infância. os laços, o sangue, a família. vivemos a perigo. todos os dias sem você foi como se o mar tivesse transcorrendo normalmente, mas não estava, porque quando você foi embora ele ficou baixo, inalcançável. só ele sabia o que viria. e você veio. a tua presença transformou as luzes numa mistura de vinho com cerveja (nas bocas). eu não me detia a nada que você dizia, porque o seus olhos, o seu sorriso, e o jeito de se aproximar do meu rosto como se a música tivesse alta demais, me embriagaram mais que o próprio álcool das nossas bebidas já quentes. quentes como os co(r)pos. entre cadeiras que iam e vinham, eu também ia e vinha, tímida demais para respeitar o desejo de sempre retornar ao seu lado. você me chamou. disse que eu chegasse mais perto (!). e percebendo que no meio da estrada as vontades se encontravam, eu arranquei sem desacelerar. o tempo passou rápido para você, para quem o tempo geralmente passa devagar. nossos olhares em batidas frontais e laterais, mas sempre fatais, foram os melhores acidentes dos minutos que restavam do ano. fui até a geladeira e na volta os fogos já acenavam uma não-hora entre dois anos. o copo reabastecido de vinho era por nós. você que tantas vezes naquela noite reabasteceu não só o copo, mas, como homem, me abasteceu de inúmeras outras coisas que eu havia esquecido nas prateleiras do passado. era um tesão que tinha gosto de vida colhida na hora certa. me aproximei devagar e desejei feliz ano novo, segundos antes de você me puxar pela cintura e me abraçar como quem esperava aquele momento desde o início da noite. eu devia ter beijado o seu pescoço, que estava iluminado. mas antes disso você beijou meu rosto e eu esmoreci. saí como quem estava ali há anos, morando no  seu abraço. abracei as outras pessoas, me afastei de você. o sentimento de perigo eminente me afastava de você. sua separação recente me afastava, afastava, afastava... a única coisa da qual eu não podia me afastar era do desejo de chupar o umbu maduro pendurado na sua boca. o que estava acontecendo comigo? eu sabia. sentei em frente ao mar e meu único pedido à Janaína foi que você me visse, ainda que eu estivesse distante de tudo e todos, que se aproximasse e ficasse ao meu lado. não lembro de ter desejado nada tão forte. ainda que soubesse que aquilo não passava de um desejo reprimido que se transformara em amor de verão. eu, fincada em terra firme, não entendia aquele sentimento flutuante. apenas seguia um fluxo imensamente gostoso. para a minha surpresa, você apareceu oferecendo mais vinho, e eu neguei, argumentando a verdade: estava no meu limite, ainda no terreno do controlável. omiti apenas que se bebesse mais um gole não lembraria de nenhum dos motivos que me impediam de ir pra cima dos teus lábios, "sem medir as consequências". você apenas me convidou para um... passeio descalço pelo mar. não me ergueu a mão, me pegou pelo braço, delicado, e andamos molhando os pés em nome de algo que só eu acreditava. ateu e do signo de peixes. em algum momento da conversa descobri. mas aquário era minha primeira aposta. não fomos longe. o medo é um objeto cortante. voltamos, sentamos, falamos de homens, mulheres, o sentido do fogo. discordamos no que foi necessário.  uma lua crescia no horizonte, enorme, meia, amarela como uma manga. ou um umbu maduro. emudeci. você de algum modo, i n e x p l i c á v e l, sabia como o mar e a lua são peças fundamentais na minha construção, no meu sensível universo. disse "vamos até onde der para alcançar a lua". emudeci mais uma vez e aceitei sem dizer palavra. sabíamos que não havia regras ou impedimentos quando os relógios e os celulares ausentes já apontavam muito mais que 3h da manhã. conversas sem fim. enquanto falávamos do fogo, você tocava nos meus braços, depois um toque no seio. sem perdão. sem meias palavras. me puxava pra correr imitando festejos de celebração históricos. dois professores falando sobre o surgimento do fogo, enquanto nas cabanas as pessoas acendiam fogueiras improváveis para uma virada de ano. eu queria sugerir sentar ali mesmo, na areia, mas por algum motivo não o fiz. fomos embora. entramos no banheiro. tremíamos de frio e calor.

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